O que KARDEC fazia com os MILHARES de PEDIDOS de PSICOGRAFIAS de PARENTES FALECIDOS ?

Kardec já não conseguia mais dar conta de responder às cartas enviadas de todos os cantos da Europa e de outros países do mundo. A média era de dez por dia. Enquanto a caixa postal lotava, ele usava a Revista Espírita para esclarecer as dúvidas mais comuns dos leitores e também para se desculpar aos “correspondentes”. “Estou na situação de um devedor que procura um arranjo com os credores, sob pena de deixar o cargo”, brincou, em artigo publicado na Revista Espírita em março de 1862.

Muitas cartas traziam o mesmo pedido: mensagens de mortos queridos. Será que Kardec poderia ajudar na evocação dos espíritos? Será que, nas sessões privadas da Sociedade, os mortos queridos não poderiam se manifestar, mesmo sem a presença de seus familiares?

Não, Kardec dizia, a não ser em circunstâncias “muito excepcionais”. As sessões continuavam fechadas aos sócios, e a autenticidade das mensagens encomendadas por estranhos não poderia ser confirmada sem a presença deles nas sessões. Além disso, os espíritos se manifestavam, com mais facilidade, em grupos formados por pessoas queridas e não por desconhecidos.

A outra justificativa para a impossibilidade da psicografia de mensagens de desconhecidos, vinculados a não sócios, era mais mundana: a falta de tempo dos médiuns da Sociedade, que trabalhavam todos, sem exceção, por “mera gentileza” — sem qualquer recompensa financeira — e mal tinham tempo de cumprir a missão prioritária: passar para o papel instruções de interesse geral.

Certas evocações não exigem menos de cinco ou seis horas de trabalho, tanto para as fazer quanto para as transcrever e passar a limpo (...) e todas as que me foram pedidas até agora formariam um volume como O livro dos espíritos.

Muitas vezes seriam evitadas uma porção de perguntas, se se tivessem lido atentamente as instruções a respeito em O livro dos médiuns, capítulo 26.

No capítulo intitulado “Das perguntas que se podem fazer aos espíritos”, em O livro dos médiuns , a questão 9 era bastante frustrante aos leitores ávidos por informações mais íntimas de seus mortos:

— De que gênero são as previsões de que mais se deve desconfiar?

De todas as que não tiverem um m de utilidade geral. As predições pessoais podem quase sempre ser consideradas apócrifas.

Mas nem todas as cartas traziam pedidos de socorro ou dúvidas já respondidas por Kardec em livros e artigos. Um envelope lacrado com cera verde, e remetido quarenta dias depois do auto de fé de Barcelona, portava o testamento de um advogado convertido ao espiritismo.

Ele se sensibilizara com um artigo em que o diretor do Museu Real da Indústria, Jobard — cada vez mais atuante na divulgação da nova doutrina —, arriscava o seguinte cálculo: 20 milhões de francos seriam uma “alavanca poderosa” para adiantar, em um século, a nova era que se iniciava.

Por que não ajudar a doutrina com uma pequena parcela desta soma? Na carta, o benfeitor justificava sua doação:

Posso e devo consagrar uma notável porção de meu modesto patrimônio a ajudar esta nova era. Esse patrimônio que adquiri para a realização de minhas provas, com o suor de meu rosto, à custa de minha saúde, através da pobreza, da fadiga, do estudo e do trabalho por trinta anos de vida militante de advogado, um dos mais ocupados nas audiências e no escritório.

Kardec divulgaria o gesto aos companheiros da Sociedade Espírita de Paris, sem revelar a identidade do doador. Fazia questão de prestar contas permanentes para evitar, ou pelo menos reduzir, suspeitas e polêmicas.

Por Marcel Souto Maior, no livro Kardec, A biografia.